Piso da enfermagem: Audiência debate necessidade de se cumprir legislação
“Na pandemia, éramos considerados heróis. Agora, esqueceram-se disso”. A constatação é de quem está há 25 anos trabalhando como enfermeira e, durante a pandemia da Covid-19, enfrentou o perigo da morte para salvar vidas. Terezinha de Jesus Silva do Nascimento esteve entre as pessoas que lotaram o plenário da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul (ALEMS) na tarde desta segunda-feira (10) para participar da audiência pública “Piso Salarial: Fortalecendo a enfermagem, aprimorando a assistência e as condições de trabalho”. O evento, proposto pela deputada Gleice Jane (PT) debateu a implementação da Lei Federal 14.434/2022, que institui o piso salarial nacional do enfermeiro, técnico de enfermagem, do auxiliar de enfermagem e da parteira.
“O objetivo desta audiência é promover uma discussão ampla e democrática sobre a valorização da enfermagem e a necessidade de se cumprir a legislação do piso salarial desses profissionais”, afirmou a deputada na saudação inicial. “Esta audiência pública busca criar um espaço de diálogo e reflexão, reunindo especialistas, representantes da enfermagem, gestores de saúde, para debater a importância do piso salarial como uma ferramenta de fortalecimento da enfermagem, buscando aprimorar a assistência e proporcionar melhores condições de trabalho”, acrescentou.
A Lei 14.434/2022, aprovada pelo Congresso e sancionada no ano passado, teve a constitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em decisão concluída no dia 30 de junho. O Governo Federal já anunciou o pagamento do piso aos servidores públicos de maneira retroativa ao mês de maio. Os estados e municípios precisam, agora, também instrumentalizar o cumprimento da lei. A necessidade dessa implementação motivou a participação significativa da categoria na audiência desta tarde.
O piso previsto na Lei 14.434/2022 é de R$ 4.750 para enfermeiros, de R$ 3.325 para técnicos de enfermagem e de R$ 2.375 para auxiliares e parteiras. Em Mato Grosso do Sul, segundo o Conselho Regional de Enfermagem, há 30.804 profissionais na área, sendo 9.419 enfermeiros, 18.209 técnicos e 3.173 auxiliares de enfermagem. A maioria (84%) são mulheres.
A composição majoritária de mulheres entre os profissionais de enfermagem foi destacada pela deputada Gleice Jane. “A enfermagem é composta, em sua grande maioria, por mulheres. E o trabalho das mulheres é invisível. O trabalho de cuidar é invisível. A luta da categoria da enfermagem é uma luta das mulheres”, frisou.
A parlamentar também destacou a necessidade de se cuidar de profissionais que atuam no cuidado das pessoas. “E cabe a nós, parlamentares e ao Governo, essa obrigação de cuidar, de olhar para essa categoria com carinho, com responsabilidade. E essa audiência é uma retribuição carinhosa pelo cuidado que vocês têm conosco, com a população”, discursou.
A importância da implementação da Lei do Piso, luta história de mais de 30 anos, foi reforçada em diferentes vieses em três palestras. Foram debatidos, nessas falas, a valorização da categoria, a questão jurídica e os problemas que podem ser causados pela carga excessiva de trabalho.
Desgaste físico e emocional, salário baixo e rotatividade
Ao falar sobre a necessidade de valorização dos trabalhadores do segmento, a enfermeira Nívea Lorena Torres, a primeira palestrante, discorreu sobre uma realidade de riscos à saúde, baixos salários e alta rotatividade, fatores que motivam o abandono da profissão. Segundo Nívea, que é do Conselho Regional de Enfermagem de Mato Grosso do Sul, é comum enfermeiros terem doenças osteomusculares (lesões nos músculos, articulações, ligamentos, etc.) e psiquiátricas, devido à natureza do trabalho e à jornada exaustiva. “Cuidar, não simplesmente de um paciente, mas de um ser humano, representa um grande desgaste físico e emocional”, disse.
O problema não se restringe a uma categoria, mas se estende a toda sociedade, segundo enfatizou Nívea Torres. “Uma das conseqüências dessa situação é a redução de acesso à saúde pela população”, citou, acrescentando também como problemas resultantes da precarização das condições de trabalho a redução dos indicadores de saúde e a segurança do paciente. Ela encerrou dizendo que valorização não se limita a palmas e falas sobre a importância do profissional. “A valorização da enfermagem precisa ir além do reconhecimento abstrato. Implementar o piso salarial previsto na Lei 14.434 é corrigir injustiças, é zelar por pessoas que contribuem com o bem maior de todo ser humano, a vida“, finalizou.
“O piso deve ser sobre o salário-base”, afirma advogado
Além da necessidade de reconhecimento real do trabalhador de enfermagem, outro assunto que passa pela discussão da implementação da Lei 14.434 diz respeito ao aspecto jurídico. Sobre esse tema, o advogado do Sindicato dos Trabalhadores Públicos em Enfermagem de Campo Grande (SINTE/PMCG), Márcio Almeida, foi enfático ao afirmar que o piso deve incidir sobre o salário-base,sobre o vencimento. “O piso é vinculado ao salário-base. Não se pode ter outra discussão senão essa. Essa discussão é de vital importância”, sublinhou. “Temos que entender que o piso é para o início da carreira. Então, no orçamento devem estar garantidos recursos para todos os acréscimos pertinentes à carreira”.
Outra questão considerada pelo advogado foi a proporcionalidade do piso sobre a jornada. Ele informou que a Lei Estadual 5.175/2018 estabelece jornada semanal de 40 horas para o enfermeiro, enquanto a Lei do Piso, de 44 horas. Na prática, deve-se estabelecer equação, considerando o valor do piso de 44 para o de 40 horas. Assim, o ganho inicial da categoria do enfermeiro, no piso de 44 horas, de R$ 4.750, seria, na jornada de 40 horas, de R$ 4.318,18. O de técnico de enfermagem, de R$ 3.325 (44 horas) passaria a R$ 3.022,72 (40 horas).
Márcio Almeida também explicou que é preciso uma lei estadual que assegure a cumprimento do pagamento do piso. “Os recursos virão da União, mas a instrumentalização do piso se dá através de legislação do poder competente. Então, o Poder Executivo estadual deve se movimentar para dar solução a isso. Deve-se garantir em lei o pagamento do piso. E isso é uma obrigação do Executivo”, explicou.
Jornada extensa coloca em risco o profissional e a sociedade
A relação entre jornada elevada e natureza de trabalho da enfermagem também foi discutido pela presidente da Associação Brasileira de Enfermagem-Seccional Mato Grosso Do Sul (Aben-MS), Arminda Rezende de Pádua, a terceira palestrante da tarde. “É uma grande irresponsabilidade exigir que devemos trabalhar em uma jornada de 44 horas”, criticou. Ela observou que o profissional de enfermagem, como já havia sido mencionado por outros participantes da audiência, submete-se a dois ou três empregos. “Ás vezes, não conseguem acompanhar o próprio filho. Como uma enfermeira terá condições de cuidar de um doente se está preocupada com o filho, que nem sabe se o filho conseguiu ir para a escola?”, questionou.
Arminda de Pádua mencionou estudos nacionais e internacionais que mostram o quanto a jornada excessiva de trabalho provoca erros humanos. “É preciso ter esse olhar para a segurança psicológica do enfermeiro e para a segurança do paciente”, notou. “A enfermagem é fundamentada na ciência do cuidado, desde o nascer à finitude. E a gente carrega na linha do tempo um trabalho desvalorizado. Então, o piso deve ser implementado. É uma forma humana de ser tratado. E é importante que esta Casa e o Governo nos atendam”, finalizou.
"Na pandemia, éramos heróis. Mas, agora...”
Encerradas as palestras, os componentes da mesa de autoridades falaram e, na sequência, ocorreu o debate, com participação significativa dos presentes. Entre as pessoas atentas a todas essas falas, estava Terezinha de Jesus Silva do Nascimento. Antes do evento, ela conversou com a reportagem e rememorou momentos críticos da pandemia da Covid-19. “Era um clima de guerra”, definiu.
“A pandemia foi um diferencial na nossa vida. Tivemos que abandonar família para ficar no hospital. E tínhamos até dificuldade para voltar para casa. Quando o motorista de aplicativo sabia que o passageiro era um enfermeiro de plantão, simplesmente recusava a corrida. A pessoa ficava horas e horas no trabalho e, quando queria voltar para casa, não conseguia”, lembrou Terezinha.
“A enfermagem, assim como outros profissionais da saúde, ficou firme e forte e não abriu mão de trabalhar durante a pandemia. Éramos considerados heróis. Agora, parece que se esqueceram disso”, lamentou-se.
E foi justamente com a pandemia, em 2020, que a luta histórica pelo piso nacional da enfermagem ganhou força. Mas essa trajetória se iniciou no fim dos anos 1980 e foi objeto de diversos projetos de lei no Congresso. A reinvidicação tomou corpo, tornando-se lei no ano passado, no contexto da pandemia, quando a sociedade reconheceu a importância do trabalho desses profissionais.
Audiência pública
O evento contou com a participação de representantes da categoria e do Governo. Além da deputada e dos palestrantes, compuseram a mesa o deputado federal, Geraldo Resende (PSDB), o presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Área de Enfermagem de Mato Grosso do Sul (SIEMS), enfermeiro Lázaro Santana, o vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Seguridade Social no MS (SINTSS-MS), Ricardo Bueno, e o diretor-geral de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde, André Vinicius Batista de Assis, representando o Governo.
A audiência pública pode ser conferida na íntegra no vídeo abaixo:
Crédito obrigatório para as fotografias, no formato Nome do fotógrafo/ALEMS.