O problema não é a baleia azul
O suicídio entre adolescentes e jovens é o tema do momento. Nas últimas semanas, o assunto tem gerado muitas discussões entre educadores, profissionais da saúde, formadores de opinião, em jornais, semanários, programas de televisão e sites, no Brasil e no mundo. Um jogo chamado “baleia azul” tem chamado a atenção por estimular comportamentos negativos e levar, até mesmo, ao suicídio.
Pelo que se sabe até agora, o jogo consiste numa série de 50 desafios diários, enviados à vítima por um “curador”, cujo objetivo final é acabar com a própria vida. Os desafios vão desde tarefas mais simples, como desenhar uma baleia azul numa folha de papel até outras muito mais mórbidas, como cortar os lábios ou furar a palma da mão diversas vezes. Em outra tarefa, o participante deve desenhar uma baleia azul no seu antebraço com uma lâmina. Como desafio final, o jogador deve se matar. As pessoas que são convidadas a participar do jogo recebem ameaças para o caso de bloquearem os interlocutores ou ignorarem o convite, dizendo que o chefe vai ficar sabendo e vai descobrir seus nomes e seus dados.
A origem desse jogo que incentiva o suicídio ainda não é conhecida, mas os primeiros relatos surgiram na Rússia, onde duas adolescentes de 15 e 16 anos se jogaram de um prédio de 14 andares, depois de realizarem as 50 tarefas que receberam. O assunto se tornou preocupação para autoridades de diferentes países. No Brasil, há inúmeros casos de suicídios entre adolescentes relacionados ao jogo “baleia azul” que estão sendo investigados em vários estados. Há relatos de alguns jovens que foram convidados a entrar no jogo e que resistiram em sair, por temer as ameaças dos administradores. O perfil dos envolvidos é de adolescentes, em média, de 12 a 14 anos, e com tendência à depressão.
É claro que este assunto deve ser motivo de preocupação e que as autoridades policiais devem se empenhar nas investigações, para identificar e responsabilizar aqueles que estão por trás desse jogo macabro. É, também, igualmente importante que pais e educadores alertem seus filhos e alunos sobre os riscos que podem correr caso aceitem os desafios propostos, e conversem principalmente com aqueles que estejam apresentando mudanças bruscas de comportamento ou sinais de depressão. Mas não podemos cair na armadilha de achar que o “baleia azul” é grande o responsável pelas autoagressões e dos suicídios entre os adolescentes que aderiram ao jogo. Como acreditar que alguém saudável, autoconfiante, com uma boa autoestima, que se sente socialmente aceito e emocionalmente seguro jogue um jogo desse e termine se matando? Este é um problema justamente porque atrai e submete aqueles que estão vivenciando algum tipo de conflito que dificulte sua capacidade de análise crítica ou sofrendo algum distúrbio de saúde mental.
A preocupação maior agora deve ser a de fazer desse jogo um motivo forte para nossa reflexão, sobre como estamos lidando com a educação das crianças, adolescentes e jovens nesse momento histórico de uma sociedade em decomposição. Eles estão nos dando sinais de sofrimento psicológico pela falta de atenção, de relações afetuosas, de presença significativa de quem lhes dá segurança e de uma educação coerente. Estão nos apontando o fracasso de famílias desorientadas, que estão terceirizando a educação de seus filhos para a escola, a mídia e as redes sociais, que não dão conta desta tarefa. Estão sofrendo as consequências da falência de um modelo socioeconômico excludente e violento na sua essência, que tem feito crescer a desesperança, as relações superficiais, os discursos incoerentes, a intolerância, a falta de perspectivas e de projetos de vida, a ausência de utopias, enfim, o vazio existencial.
Pensar na morte faz parte de nossa constituição psíquica. Isto é normal e não há nada de errado com quem pensa na finitude de sua existência. Porém, se tem um tempo onde é mais comum pensar na morte é a adolescência, uma vez que, com o fim da infância vivenciamos o luto pela perda do corpo de criança, deixamos de ser objeto do outro (da mãe, do pai, da vovó, do titio), passamos do período da total dependência de alguém para a conquista do mundo e da nossa independência. Surgem as preocupações de como vamos nos virar sozinhos, o que vamos fazer para garantir nossa sobrevivência, que escolhas vamos realizar, já que ninguém mais vai decidir as coisas por nós. Descobrimos que pertencemos a nós mesmos e que nossa vida futura vai ser determinada pelas nossas decisões. E se, por um lado, isso pode ser libertador, por outro, pode representar também um momento de sofrimento, de conflitos, de perdas, de instabilidade, de insegurança, de angústia. É um momento de solidão, pois descobrimos que não somos de ninguém, que não há ninguém por nós. Assim, é comum na adolescência, diante do conflito liberdade/solidão, uma certa melancolia, que pode evoluir para a depressão, a depender do ambiente e das relações vividas pelo adolescente. A superação desses sentimentos vai depender dos motivos que se encontra para viver, dos projetos a realizar, das causas assumidas, das pessoas significativas, das paixões e dos amores que surgem na vida.
Vivemos tempos de espetaculares avanços tecnológicos, que, se facilitaram em muito nossas vidas, tanto no mundo do trabalho como nas relações que estabelecemos com as pessoas em outras situações, significaram também novos desafios. O acesso às informações e a comunicação entre as pessoas se tornaram extremamente facilitados, mas, em contrapartida, aumentou a superficialidade nos debates, a provisoriedade nas relações e a constituição de um universo de amigos virtuais, que estão muitos “próximos” e, ao mesmo tempo, bem distantes. Diminuíram os contatos reais, as rodas de conversa, as trocas de afetos, de contatos físicos, da vivência das experiências significativas com aqueles que têm importância para nós. É comum adolescentes passarem horas trancafiados em seus quartos, completamente envolvidos no mundo virtual em seus computadores ou celulares. Como poderão elaborar sua tristeza e encontrar sentido em sua existência, se não encontram palavras para falar, se não há o encontro com quem falar, se não há o encontro para ouvir e partilhar sentimentos, angústias, esperanças? É justamente aí que pode entrar o jogo “baleia azul” e se tornar um perigo, na medida em que alguém fragilizado emocionalmente pode se submeter aos comandos de um “curador”, que se apresenta como autoridade diante da falência do encontro, da troca e da palavra.
A sociedade alicerçada nos valores do consumismo, do individualismo e da competição não resolveram os problemas da exclusão social e, tampouco, é capaz de seduzir as pessoas, principalmente os mais jovens, para as causas e os projetos coletivos. A busca da convivência fraterna, solidária, da preocupação com o outro, do bem-estar para todos foi substituída pela busca do status, do poder, da juventude eterna, do prazer imediato. A crise atingiu a educação, esvaziada de conteúdo significativo, incapaz de levar à compreensão do mundo real, e que se revestiu do tecnicismo como instrumento de inserção no mercado para promover a ilusória ascensão social. A crise chegou na religião, que promete o céu na terra, a conquista da prosperidade, a cura dos males físicos e espirituais e a felicidade, com fortes apelos emocionais, aos seus adeptos fieis aos seus compromissos financeiros para com a igreja. A crise chegou nas famílias, que estão sem referenciais para educar e orientar seus filhos, num mundo sem esperança e perspectivas; famílias de pessoas distantes e desconhecidas umas das outras, embora vizinhas de quarto. A crise se embrenhou na cultura, na pobreza literária dos livros de autoajuda, das músicas de conteúdo machista e preconceituoso, dos programas de televisão que valorizam a beleza e a perfeição físicas com apelo erótico e da informação manipulada. A crise chegou em todas as atividades da vida social e põe em cheque a própria organização da sociedade estabelecida.
Pois bem, estamos diante de desafios maiores do que o de combater, tão somente, o jogo “baleia azul”. A baleia é maior do que imaginamos. Precisamos resgatar nossa humanidade neste mundo desumanizado.
*Artigo de opinião.